Os textos de cada recensão são da lavra de Manuela Maldonado, uma das responsáveis do CRILIJ e especialista em LIJ.
VERSO A VERSO - ANTOLOGIA POÉTICA - Vários autores
Do verso livre ao rimado, esta antologia poética, assinada por seis autores, é um motivo de festa para o ouvido, dado que a poesia, em primeira instância, deve ser um momento de escuta e impregnação. Sobretudo, aquando da iniciação a um texto tão peculiar cuja tessitura se apoia, essencialmente, no ritmo, servido ou não pela rima.De Amadeu Baptista seleccione-se – Quando os arbustos, pela captação, em música poética, do instantâneo fugaz; de Francis Duarte Mangas – Aranha, pela significância do jogo de aliterações; de João Manuel Ribeiro – Cometa de cauda anão, pelo uso de uma rima contagiante a propor situações cinésicas; de Luísa Ducla Soares – O Triângulo, pelo ritmo irregular acentuando a passagem da Realidade indesejável à realização do sonho desejado; de Nuno Higino – Os vagabundos, pela toada melódica de uma única estrofe de grande significado existencial; de José António Franco – Três grandes gradeamentos verdes, pela moldura rítmica de um trava-línguas num nonsense renovado; de Vergílio Alberto Vieira – Comboio a carvão, pelo aproveitamento estrutural de uma lengalenga numa situação poética revisitada.A ilustração de João Concha, figurativa, é servida por uma paleta de cores adequadas às situações sugeridas, no que toca a referentes, deixando o acesso à tessitura textual aos ouvintes/leitores.A capa, pela escolha de parte da face de uma menina, identificável pelos caracóis e, sobretudo, pelo laço, privilegia os olhos e o ouvido. Os olhos porque são a legitimação do conhecimento do Real, o ouvido porque a poesia é música, podendo fazer ver de outro modo, legitimando essas descobertas igualmente.
Para todas as idades.
Nos Versos Diversos, por todo o volume, ressoa música poética, quer através de ritmos silábicos, quer métricos: consoantes ou toantes ou mesmo assonantes, seguindo um apelo temático.E se algumas composições se corporizam ao jeito da quadra popular, como “Quadras soltas”, e “Adivinha”; outras estruturam-se em modo de lengalengas, centradas em jogos de palavras – “A magia das Letras”, “As Letras mal comportadas”, “Lucas”, “O puzzle sem matriz”, “O burrinho da Inês”, por exemplo. Há ainda outras, porém, que, para lá da música, contêm “le sang du poème”, como diria Georges Jean, estabelecendo a distinção entre jogos poéticos e poesia pura. Neste caso, enumerem-se: “Confusão de estrelas”, “O mundo espera”, “Aquela criança de Timor”, “A barquinha e o farol”, “Uma estrela com sarampo”. A brevidade das composições e o ritmo cadenciado privilegiam-nas para serem ouvidas e ditas pelos mais pequenos.As ilustrações de Ana de Castro traduzem, iconicamente, as sugestões do texto escrito, com acerto na gama cromática de desenhos destinados aos mais pequenos. A escolha do burrinho para a capa, protagonista que é da última composição é muito feliz, dada a boa aceitação pelas crianças deste animal meigo, de olho vivo e orelhas alçadas, a captar a música do Universo…
O design gráfico enfatiza, criteriosamente, os dois códigos em presença, o escrito e o icónico.
A partir dos 5 anos.
A MENINA DAS ROSAS - João Manuel Ribeiro
Embora o narrador seja extradiegético, porque fora da história, concede à Menina das Rosas o desvendamento da sua interioridade, ora através do diálogo, ora da corrente de pensamento. E é assim que, a partir do primeiro acontecimento supracitado, perpassa uma vida dedicada ao apaziguamento das relações entre pai e filho, e do seu próprio apaziguamento. Faculta-se ainda à protagonista um ponto de vista pessoal e é nessa construção que a poeticidade decorre, surgindo uma figura feminina sofredora, mas lutadora, evocando os bons e os maus momentos de um matrimónio e de uma maternidade difíceis. Num diálogo entre marido e mulher, no leito de morte de Dinis, desmistifica-se o milagre das rosas de uma forma muito humana e emocional. E é, por isso, que o titulo se apresenta como " Menina das Rosas". A par da forte carga semântica de Rosa, antepõe-se o vocábulo Menina, outro grande referente poético que consistirá no fio condutor da narrativa: Isabel é portadora do primordial, por rejeição do acessório e do transitório, mau grado o tempo implacável. A ilustração de Sandra Nascimento dialoga com o texto escrito, reforçando o maravilhoso da proposta narrativa ao conceber num traço figurativo polícromo as situações que se desdobram nas páginas como um tapete persa prestes a levantar voo. E, por isso, a ilustração é estruturalmente cinética. A única representação estática é a da capa, enunciadora de um perfil feminino intemporal, expressão do duradouro e do eterno. A estes efeitos ajudou o trabalho de design e paginação de Anabela Dias.
A partir dos 8 anos.
OS CAVALOS A CORRER - Amadeu Baptista
Se, por natureza, o cavalo é um animal associado ao trote e ao galope, na redundância do título existe um apelo de imaginação à solta. O poeta é um cavalo sem freios, que fala dos seus pares em estrofes irregulares, muito ritmadas, de um modo encantatório. Ele acompanha as crianças, o primordial, na sua viagem para o sul, o ponto edénico da rosa dos ventos; assume-se como a brisa poética (Galope); implica-se num quotidiano como um visionário (Nobreza); caminha dentro de si n’A rota do infinito; fala de primeiros passos na aventura poética (Gaiatos); inscreve-se numa maternidade dolorosa para os poemas verem a luz (Maternidade); revela a difícil e laboriosa tessitura dos seus poemas (Alta-Escola).
A par destas assunções, que constituem o acto criador do poeta, há um outro aspecto do livro assaz interessante que integra a leitura pessoal de cavalos célebres pertencentes a heróis ou a artistas cujo sonho tornou mais rica e luminosa a condição humana. Refiro-me a “Pégaso”, a própria poesia entendida do nascimento na rocha à manifestação alada; a “O Cavalo de Tróia” no que representa da capacidade da razão imaginante; a “Incitatus”, cavalo de Calígula, expressão de loucura castradora; a “Kafka”, símile de imaginação inconcebível; a “Frederico Garcia Lorca”, o rasgador de limites como o canto jondo; a “Juan Ramón Jiménez”, o demolidor da ténue fronteira entre o Real e o Imaginário.
Há ainda poemas relativos a representações equinas de pintores, onde sobressaem: “O Ginete de Rembrandt”, a procura do oculto; “Franz Marc”, a metamorfose artística.
Ilustrado por Estela Costa, o movimento do traço acompanha o ritmo dos poemas, sendo que no último, intitulado “Cavalinho”, a figuração é estática: o poeta chegou ao fim do seu labor e, na garupa do equídeo “cresce um ninho de hera”, a coroa do trabalho acabado, temporariamente, dado que o chamamento da inspiração, sob a forma de “cavalinho…, cavalinho…”, remete para outras andanças a que as reticências emprestam uma infinitude durativa.
O cromatismo no design, bem como a paginação de Anabela Dias indiciam uma sábia escolha da representação do sonho e da irrealidade.
No final do livro, há um pequeno glossário de alcance pedagógico.
A partir dos 10 anos.
IMPROVÉRBIOS - João Manuel Ribeiro
Na sequência de outros volumes, de vários autores, sobre provérbios, analisados neste boletim, tem-se realçado o seu valor rítmico e rimático como iniciação à fruição da "poesia", através do viés acústico. O livro denominado Improvérbios anuncia, logo no titulo, um processo de desconstrução. E assim acontece, por meio das paráfrases trabalhadas sobre alguns textos sobejamente conhecidos. Se o provérbio é uma forma codificada de conhecimento, ao desconstruí-lo deixa de o ser, entrando-se num mundo de jogos fonéticos e semânticos particularmente gratos ás crianças.
Nos jogos deste livro encontram-se, sobretudo, situações invertidas: "Depois da bonança / a tempestade nunca é mansa; de evidência: Quem sai aos seus / tem pança e bigode / e nunca pode / dizer-lhes adeus; " de absurdo: "Quem tem boca vai, / onde a língua lhe chegar"; de acrescento: "Quem filhos tem, / não tem só cadilhos, / tem brilhos também".
A ilustração de Flávia Leitão opta por um traço de gosto infantil, ás vezes caricatural, com muito cromatismo, abrangendo intencionalmente, como texto icónico, toda a página onde o texto gráfico passa a ser uma mera legenda.
A paginação colorida e o design gráfico de Anabela Dias inscrevem-se harmoniosamente na finalidade do livro.
A partir dos 5 anos.
ANTON - Simão Vieira
O contacto com gentes e costumes de várias paragens do mundo, pelo fenómeno migratório, tem provocado uma escrita literária de contornos diversificados. Para crianças e jovens surgem, constantemente, narrativas ou textos dramáticos e, às vezes líricos, sobre a Diferença.
Porém, neste volume, Simão Vieira constrói uma diferença na Diferença: apresenta um diário de interioridade de um menino de Leste, pasmado pelas coisas que descobre noutro país diferente do seu e pela curiosidade que suscita entre os colegas, desde o aspecto físico até à aquisição de determinadas competências linguísticas, passando pelo nome.
A perspectiva do Anton não é amargurada, os sucessos fazem-se de pequenas conquistas, até descobrir uma linguagem universal: a matemática. A inserção num meio adverso faz crescer mais depressa e, por isso, Anton é um pensador. E até nisso o autor do volume é coerente com a perspectiva adoptada: como se trata de um diário de interioridade de um adolescente o discurso é fragmentado e fragmentário, acompanhado por caracteres grafemáticos de vários tamanhos na mesma palavra.
Porque escritor e ilustrador são a mesma pessoa, explica-se a consonância dos dois códigos em presença. Pela natureza do texto, a figuração é a da sugerência, não a da concretização. Nessa perspectiva, o cinzento é a cor predominante, expressão da incerteza, do desconhecido. No entanto, quando se fala de estruturação de afectos, quer na relação pedagógica quer inter-pares, surge o salmão ou o azul de aguarela. Só no reino da matemática, lugar privilegiado de Anton para comunicar, é que irrompe o verde determinadamente.
A partir dos 10 anos.
MEU FITO, MEU FEITO - Vergílio Alberto Vieira
De Vergílio Alberto Vieira, na col. Rimas Traquinas, há um novo livro inspirado em lengalengas e provérbios, temas do agrado infantil, muitas ancoradas no nonsense. O título do volume é o primeiro jogo sobre o provérbio “Dito e Feito”.
Tendo como suporte o nonsense, aparecem composições como “O Cubo Mágico”, “O Jogo da Glória”, “O Sonho”, “O polegarzinho resmungão”. No entanto, há brincadeiras mais elaboradas onde passa informação cuidada sobre figuras portuguesas ilustres como D. Sebastião, Vasco Santana, Fernão Mendes Pinto. Nem o Cristiano Ronaldo escapa à brincadeira… Os animais servem, como nas fábulas, para encarnar os defeitos e as qualidades humanos, caso de “A Girafa lambisqueira”, “O sapo voador”, “Dom Grilo”. Esta última sátira, a mais mordaz, desenvolve-se em quintilhas. Todas as outras composições se estruturam na quadra, o verdadeiro suporte da literatura oral popular.
A ilustração de Elisabete Ferreira, através de figuração hiperbólica, serve a finalidade do texto que é brincar sem limites. Assim se explica o chapéu alto, as pernas alongadas dos bonecos ou os braços, que os rodeiam, as girafas que se estendem da primeira à última página, um D. Sebastião com olhos redondos como mundos de inquietude curiosa, um Fernão Mendes Pinto com uma longa barbicha como os mandarins das terras por onde andou e que lhe confere estatuto, um teclado que sai para fora das páginas do volume. A escolha das cores de pastel para as páginas agrada ao olhar sem prejudicar os jogos do texto.