Um voo com o pássaro da linguagem dentro
1.O poeta e ensaísta Adolfo Casais Monteiro chamou à poesia voo sem pássaro dentro. Eu diria que toda a obra literária é um voo com o pássaro da linguagem dentro.
A prosa e a poesia de Maria da Conceição Vicente são esse voo. A autora tem plena consciência de que o grande desafio da escrita é o de encontrar a maneira apropriada, a expressão que dê relevo e brilho ao que o sujeito da enunciação quer dizer, dizendo-o com letras e sílabas, palavras e frases e cujo produto final será a “coisa de arte” de que falava o poeta Rainer Maria Rilke. E é assim que, para Maria da Conceição Vicente, a forma não é um mero instrumento, porque ela também provém do poder criativo do autor e não é dissociável do conteúdo materializado no universo das palavras.
O olhar dos emissores das obras de Maria da Conceição Vicente é simultaneamente um olhar poético e um olhar poiético, isto é, um olhar que não se nos apresenta como sendo ingénuo ou espontâneo ou, se quiserem, lírico, cor de rosa, mas antes como um olhar trabalhado com vista a sustentar o enlace entre o sujeito da escrita e a realidade abordada. Na verdade, a prosa de Maria da Conceição Vicente não pretende ocultar o real, mas, pelo contrário, visa despertar para o real.
A narrativa e a poesia de Maria da Conceição Vicente denotam que a autora sabe que a literatura para crianças implica que o escritor use um olhar que transcenda o ver sem ver, porque falho de atenção, com que o comum das pessoas atravessa os dias. Por outro lado, o trabalho literário da autora reveste-se de um intencionalidade facilmente observável, a de estabelecer uma relação dialógica com o leitor que se pretende seja um interlocutor ativo e construtivo e não um destinatário passivo, mero recetor de um discurso alheio.
Gostaria ainda de referir que um dos aspetos que mais aprecio na escrita de Maria da Conceição Vicente é a hábil conciliação entre o propósito culturalmente sério que a incita à produção literária para crianças e a vertente lúdica da sua obra, indispensável a um registo literário dirigido a um público infantil mas que não se pretende infantilizar, porque a autora almeja que a criança descubra o real, apoiada na componente emancipadora da imaginação.
Fernando Pessoa era de opinião que “nenhum livro para crianças deve ser escrito para crianças”, porventura por pensar que esse propósito seria redutor do riquíssimo universo da criança e propiciador daquilo que, com extrema crueldade, o poeta da “Mensagem” apelidou de baba pedagógica, muitas vezes imbuída de um pendor moralizante que frequentemente não se compagina com o fulgurante tesouro que a criança guarda dentro de si. Creio que Maria da Conceição Vicente está, como sempre esteve, alertada por aquela opinião de Fernando Pessoa e cuido ainda que ela sabe, como Guerra Junqueiro sabia, que “a alma duma criança é uma gota de leite com raio de luz. Transformar esse lampejo numa aurora, eis o problema.”. Os livros de Maria da Conceição Vicente pretendem, com simplicidade mas não simplismo, sabedoria e imaginação contribuir para aquele desígnio.
2. O último livro de Maria da Conceição Vicente, O Diabo do Alfusqueiro, inscreve-se numa longa, variada e dispersa história de estórias das pontes do Diabo. Joaquim Lino da Silva, num ensaio publicado na “Revista Lusitana” (Nova Série), nº 8 (1987), relata alguns casos concretos dessa história e refere outros. A atenção de Joaquim Lino da Silva centra-se fundamentalmente na lenda da Ponte da Misarela, lançada sobre o rio Rabagão, na lenda da Ponte de Vale de Telhas, a cerca de nove quilómetros de Valpaços e na Ponte de Vila Formosa, lançada sobre a Ribeira de Seda, distante dezasseis quilómetros de Alter do Chão. De entre as pontes referidas consta a do Alfusqueiro bem como outras construídas pelo Demónio em Espanha, na Suiça, em França e na Bélgica.
O narrador de O Diabo do Alfusqueiro assegura ao leitor que a ponte sobre o Alfusqueiro, na serra do Caramulo, realidade material motivadora desta história, “continua firme, sólida, soberba no seu arco de volta inteira, unindo margens, facilitando encontros, ligando caminhos”, o que impede que esta história seja contada à maneira tradicional – era uma vez uma ponte. Não era, é uma ponte. Aquilo que, segundo o narrador, “viajou de longe no tempo, desafiando o engenho dos curiosos, foi a história desta ponte, parente próxima de histórias de outras pontes, surgidas em diversos países da Europa e em diferentes regiões de Portugal, “lá, onde existem rios difíceis, teimosos em deixar-se atravessar”. São pontes erguidas em sítios tão difíceis que o povo cuida, segundo o narrador de O Diabo do Alfusqueiro, que só com uma mãozinha divina ou demoníaca poderiam ser construídas.
O rio Alfusqueiro, “que desce a serra do Caramulo para alimentar o rio Águeda”, não foge à regra e no inverno enche-se “de água e de fúria para arrastar na corrente tudo o que se atreva a barrar-lhe o caminho, e transformando num inferno a vida de quem por ali mora”.
Parece-nos ser de interesse referir que o narrador assume com clareza o propósito de contar a história de O Diabo do Alfusqueiro para que a memória desta lenda não se apague e para que esta história, passada entre íngremes e apertados desfiladeiros caramulanos, num lugar agreste de riba-Águeda, seja contada com palavras que respeitem a versão com que chegou “à gente destas terras”.
3. Entremos então no livro O Diabo do Alfusqueiro que conta uma história estruturadamente despojada, assente sobre uma língua literária que nos cativa pela sua qualidade, e desenvolvida por um narrador subtil, parcimonioso, que se comporta como quem sabe que narrar e narrativa derivam do vocábulo latino narro que significa “dar a conhecer”. E fá-lo de um modo exemplar.
Apesar de toparmos com verbos conjugados na primeira pessoa não vamos classificar O Diabo do Alfusqueiro como “uma narrativa na primeira pessoa”, porque concordamos com Gérard Genette quando considera não adequadas as designações de “narrativa na primeira pessoa” e “narrativa na terceira pessoa” e sua distinção, tendo em conta que “estas locuções correntes parecem-me com efeito inadequadas, pois que colocam o acento da variação no elemento de facto invariante da situação narrativa, isto é, a presença, explícita ou implícita, da «pessoa» do narrador que não pode estar na sua narrativa, como todo o sujeito da enunciação no seu enunciado, senão na «primeira pessoa»” (Figures III). Mas o que me interessa anotar é que o narrador de O Diabo do Alfusqueiro assume uma focalização heterodiegética, exterior portanto à história narrada, numa posição de quase apagamento, para no final do percurso diegético ou do enredo, se preferirem, nos surgir com um carácter interventor, através de um comentário judicativo, sem, no entanto, num caso ou no outro, jamais nos surgir como um agente que participa da história narrada.
A lenda nasce porque nas margens do Alfusqueiro, que no inverno é um rio violento, correndo velozmente entre escarpados e estreitos desfiladeiros, foram nascendo pequenas aldeias e os seus habitantes sentiam necessidade de comunicar uns com os outros. Daí tornar-se urgente a construção de uma sólida ponte que pusesse fim a anteriores tentativas falhadas.
Foi então que um homem abastado, cristão honrado e temente a Deus, prometeu aos aldeãos construir uma ponte. Porém, cedo concluiu que a edificação da ponte era uma “tarefa sobre-humana”. O narrador indicia deste modo que tal tarefa não se ajusta às mãos dos homens, mas à mão de Deus ou do Demónio. E, tal como o avisado leitor previu, uma das soluções vai concretizar-se por intermédio do diálogo entre o Diabo e o homem abastado, cristão honrado, respeitado e temente a Deus que, apesar de todas as suas virtudes, se vê obrigado a pactuar com o Diabo para poder cumprir a sua promessa.
Usando um conceito de Claude-Edmonde Magny, vamos estar perante a primeira colisão desta narrativa ou seja perante o encontro de duas personagens de que resultará o avanço da história. Esse avanço surge com a celebração de um contrato, escrito com sangue do cristão-honrado, respeitado e temente a Deus, pelo qual o Diabo se compromete a erguer a ponte e o cristão-honrado a vender-lhe a alma. Como todo o contrato rigoroso, este também fixava uma data para a conclusão da ponte: a noite de Natal, no momento em que o galo cantasse.
O narrador, com ajustadas elipses narrativas, para salvaguarda da economia do texto, elide os pormenores da construção e só informa o leitor quando a ponte se erguia, soberba, na paisagem alcantilada do Alfusqueiro e, “faltava apenas completar o tabuleiro e as guardas”. Nesse momento, o narrador começa a desenhar uma outra colisão, mostrando-nos a revolução interior por que passa o homem abastado, cristão-honrado, respeitado e temente a Deus, assim descrita: ele sentia-se “sufocado pelo remorso”, atormentado, dia e noite, com medo de uma “queda abrupta no poço do inferno”. É então que, deste homem, varrido pelo “mais completo desespero”, se aproxima uma fada boa, apiedada do pobre cristão-honrado, respeitado e temente a Deus, dizendo-lhe para não desesperar e mandando-o atirar o ovo que lhe oferecera pelo tabuleiro da ponte, na “hora do cantar do galo” e quando o Diabo se aprestasse “para colocar a última pedra”.
Esta segunda colisão permite que a história avance para o final: do ovo, ao partir-se, saltou um galo que “rasga o silêncio da noite com o seu canto de festa, para chamar os fiéis para a Missa de Natal.
O cristão livrou a sua alma, sem deixar de cumprir nem o contrato nem a promessa que fizera aos aldeãos, seus vizinhos”. Quanto ao demo, o narrador conta-nos que “há quem diga que o Diabo deu um estoiro e nunca mais apareceu. Outros dizem que ele desceu aos infernos para preparar uma tempestade de fazer tremer os homens e a serra”.
A história poderia acabar aqui, porém o narrador decide finalizá-la com um seu comentário que a enriquece grandemente. Diz o narrador: “Não sei quem fala verdade. Mas deem-me a liberdade de acrescentar um ponto a este conto: o Diabo, decerto, preparou uma tempestade. Mas não foi de raios e coriscos. A sua vingança foi muito mais terrível, muito mais destruidora: os homens tornaram-se cada vez mais hábeis na construção de pontes para atravessar rios traiçoeiros, é certo, mas o Diabo vingou-se, tornando-os inábeis quando se trata de construir pontes capazes de os aproximar, quando se encontram em lados opostos dos rios da vida”.
Este percuciente olhar sobre a atualidade, sobre um tempo em que a Europa, senhora de um qualificado desenvolvimento tecnológico, está à beira de uma terrível convulsão, coloca este livro num plano de ainda mais invejável qualidade. Este olhar induz o leitor a refletir sobre a atualidade e, como escreveu J. Barata-Moura, o “apelo à atualidade não é o chamamento de atenção para alguma coisa estranha, para alguma coisa transcendente, para algum objetivo exterior à nossa própria tarefa fundamental: que é viver”.
É tendo em conta essa tarefa fundamental que é viver, que o narrador inscreve no seu comentário o juízo de que os humanos para serem felizes precisam de lutar por um viver solidário e recusar um viver solitário. Quero dizer que estamos numa fase, ou num tempo, que Ernst Bloch, filósofo alemão de raiz marxista, autor do notável e extenso livro “Princípio Esperança” em que desenvolve uma ampla análise filosófica “da existência humana aberta ao futuro”, designaria por o do noch nicht, o tempo do ainda não mas que contém em si a “possibilidade de tornar-se outra coisa”, sendo portanto um ponto de partida, no caso vertente, para a construção de um futuro melhor, vivido numa sociedade livre, pacífica, justa e solidária.
Eis como a literatura também pode ser um belo instrumento contra a alienação! [Paulo Sucena]