Partilhamos convosco as palavras de Sara Reis da Silva na
apresentação do livro «Rimas e Castanholas», de José António Franco e Rui Pedro
Lourenço, no passado dia 20 de Abril, na Casa da Cultura de Coimbra.
No posfácio de Primeiro Livro de Poesia (texto que nunca
me furto a citar, porque considero que representa um mini-tratado de pedagogia
da poesia), nesse posfácio, escreve Sophia:
«(…) Espero que estes poemas sejam lidos em voz alta,
pois a poesia é oralidade. Toda a sua construção, as suas rimas, os jogos de
sons, a melopeia, a síntese, a repetição, o ritmo, o número se destinam à
dicção oral.
A poesia é a continuação da tradição oral. E é a mestra
da fala: quem, ao dizer um poema, salta uma sílaba, tropeça, como quem ao subir
uma escada falha um degrau. (…)
E é importante aprender o poema de cor, pois o poema
decorado fica connosco e vai-nos revelando melhor, sempre que o repetimos, o
seu sentido e a beleza da sua linguagem e da sua construção» (Andresen, 1999:
186).
Os textos poéticos que compõem a colectânea de José
António Franco agora publicada, nascidos da criatividade de um poeta que não
nasceu hoje nem ontem, mas que há muito se dedica à escrita poética e, também,
à reflexão acerca das possibilidades de aproximação desta dos leitores , estes
poemas, dizia, evidenciam uma forte ligação à tradição oral. Na verdade, esta
tem representado, não só na poesia de José António Franco, como também,
genericamente, na poesia de outros autores que têm a criança como destinatário
preferencial da sua escrita , uma das mais recorrentes linhas matriciais,
representada nas importantes vozes de Maria Alberta Menéres, Eugénio de
Andrade, Vergílio Alberto Vieira, Matilde Rosa Araújo, Luísa Ducla Soares,
Mário Castrim, Violeta Figueiredo, José Jorge Letria e, mais recentemente,
Maria da Conceição Vicente ou João Manuel Ribeiro, apenas para citar alguns
exemplos.
Como constatámos já em Versos de Respirar (Calendário de
Letras, 2009) e, ainda, em certos textos de José António Franco que integram a
antologia poética Verso a Verso (Trinta por uma Linha, 2009), também nos cerca
de vinte poemas de Rimas e Castanholas é possível distinguir vestígios da
influência dessas rimas infantis, apelidadas por Maria José Costa como “Um
Continente Poético Esquecido” , tão do agrado, aliás, das crianças (e não só).
O recurso a sequências de numeração progressiva – como em “um passo de cada
vez” – dá conta de uma criatividade poética gémea das lengalengas. E esquemas
aliterativos ou de repetição de fonemas, por exemplo, aproximam alguns dos
textos de José António Franco dos trava-línguas, uma das formas poético-líricas
da tradição oral que mais risos e embaraços provoca, porque, como se sabe, por
vezes, nos entaramelam a língua que, com dificuldade, procuramos domesticar. É
o que se observa, por exemplo, no poema “faço figas”:
“faço figas
frito favas
forço ferros
finjo fumos
finas fragas
falcões feios
fracos folhos
frescas feiras
fitas fervo
faunos forjo
freto filas
franzo folhas
(…)” (Franco, 2012: s/p).
Neste, como em outros poemas da colectânea em apreço, o
ritmo cadenciado (neste caso concreto, binário), decorrente do paralelismo de
construção e, muito especialmente, da adição de dois termos pertencentes a
diferentes classes gramaticais (forma verbal + substantivo/nome; adjectivo +
substantivo/nome), parece convidar a uma verbalização animada, compassada, até,
e acompanhada, por exemplo, do código gestual. Aliás, é o próprio título, pela
associação dos vocábulos “Rimas e Castanholas”, que, anunciando o contéudo
poético da compilação, sugere simultaneamente o jogo com a linguagem que se
celebrará e, mais concretamente, um ritmo e uma musicalidade muito conhecidas.
Na verdade, a expressividade deste registo marcadamente
sensorial, materializado nas referidas sugestões auditivas/sonoras, surge
também substantivado em versos com vocábulos onomatopaicos (como no poema
“trilorilá”, por exemplo), bem como em certos segmentos sinestésicos, ou nos
quais se aliam diferentes sentidos (audição+ olfacto + visão), como sucede, por
exemplo, no seguinte poema:
“ó grilo canta mais alto
o teu canto cheira a verde
e é doce como o verão
mais alto senhor grilo
eu quero sonhar tranquilo
e o escuro atrevido
a mordiscar-me os pés
não me vai deixar dormir” (idem, ibidem: s/p).
Neste, como, num número considerável dos restantes cerca
de vinte poemas, sem titulação, todos grafados a letras minúsculas e sem
pontuação, que podemos encontrar em Rimas e Castanholas, a figura animal, um
grilo, é transformada em protagonista, parecendo intergir com o sujeito
poético. Efectivamente, nesta espécie de animalário, povoado por bichos que
agem, que se vestem e que falam como os homens, incluem-se corvos convencidos,
pardais que tropeçam e partem o bico, pardais de bicicleta, cães a tocar
violino, cobras vaidosas, galinhas de bigode, perdizes que esmurram o nariz e
gatos, muitos gatos, um conjunto de personagens que alimentam um discurso
marcadamente humorístico, decorrente dos três tipos de cómico (de carácter, de
situação e de linguagem) e, em especial, do nonsense e/ou absurdo.
Comum também a vários poemas são as marcas de
narratividade ou o “ensaio” de pequenas/micronarrativas, como sucede em “torta
mas mesmo tão torta” ou, até mesmo, em “o lobo mau rinhaunhau”. É, aliás, neste
último, um brevíssimo texto no qual surge recriado poeticamente o conto
clássico do Capuchinho Vermelho, que um outro aspecto singularizador dos poemas
de Rimas e Castanholas ganha particular forma e sentido. Trata-se de uma
multiplicidade de alusões intertextuais, patentes, por exemplo, em “velha
chocarreira” (3º poema) – gato das botas e patinho feio – que estimulam o
leitor destes textos.
As ilustrações, a partir de uma técnica mista, sustentada
pelo recorte e colagem e pelo desenho, por exemplo, procuram seguir o trilho
ideotemático da generalidade dos poemas. A componente visual reforça, assim,
notas como o som ou a música em potência – note-se que, nesta, se espalham
inúmeros segmentos de pautas musicais, disseminados, até, por espaços
improváveis (como o corpo de gatos ou uma panela, por exemplo) –, recria a
forte presença animal que pontua os poemas da colectânea, além de dar conta
também dos gestos da infância e do dinamismo que a caracteriza.
Para terminar, peço emprestadas algumas palavras a
Jean-Claude Pinson:
“Na verdade, é numa espécie de entre-dois, a meio caminho
entre a inteligência de um sentido e a sensibilidade às formas verbais, onde se
dá a hesitação entre sentido e som, que se abre a onda do poema. Ao solicitar,
mais do que a nossa inteligência narrativa, uma compreensão que se poderá dizer
«afectiva», o poema lança as suas palavras como outras tantas sondas, em
direcção aos fundamentos mais recônditos da nossa presença sensível no mundo.”
(Pinson, 2011: 30).
E essa “virtude tonificante da poesia para a existência”
(Pinson, 2011: 31), de que fala Jean-Claude Pinson, no caso particular da
poesia de José António Franco, em Rimas e Castanholas, possui como raiz a
possibilidade inestimável de estar muito próximo da infância, da sua
inteligência, das suas emoções, dos seus discursos, do seu olhar incomparável
de ver o mundo.
E, já agora, “senhor professor/ para onde vão os poetas /
quando acabam os poemas”? (idem, ibidem: s/p).